Da pré-história à pós-modernidade, o ser humano sempre procurou se destacar; hoje, esse desejo virou um mercado sólido — e repleto de desafios

 

Para o professor Christopher Berry, luxo está ligado a necessidade básicas

 

Sempre buscamos aliar prazer e beleza, e os poucos vestígios do passado remoto da humanidade indicam a vocação da espécie para aprimorar os recursos fornecidos pela natureza. De acordo com estudiosos, o luxo, como o conhecemos hoje, teria nascido dessa inspiração para aperfeiçoar o que consumimos.

 

“Produtos de luxo se dividem em quatro categorias: alimentação, indumentária, moradia e lazer. E todas estão ligadas a necessidades humanas básicas”, diz Christopher Berry, professor de teoria política e vice-reitor da Faculdade de Direito, Negócios e Ciências Sociais da Universidade de Glasgow, na Escócia.

 

Autor de “The Idea of Luxury: A Conceptual and Historical Investigation” (A Ideia de Luxo: Uma Investigação Conceitual e Histórica, em tradução livre), não publicado no Brasil, Berry defende que o conceito de luxo é universal, perene, e independe de modelos econômicos ou momentos históricos.

 

“Luxo é apenas o refinamento das nossas necessidades, embora, claro, a ideia de refinamento mude em diferentes épocas e lugares”, afirma o professor. “Máquinas de lavar eram um refinamento luxuoso do ato de lavar roupas com as mãos. Mas hoje são socialmente necessárias. Preço caro não é um fator essencial, mas o modo de elaboração, sim”.

 

Exclusividade e exclusão

Com pigmentos, ossos e plumas, os xamãs, primeiros líderes conhecidos entre os homens, se destacavam pelo uso de vestimenta e objetos diferenciados. Surgiram aproximadamente em 40.000 a.C. e comandavam dois pontos importantes da vida pré-histórica: a caça, essencial para a sobrevivência antes da agricultura, e a espiritualidade.

 

Busto da rainha Nefertiti: no Antigo Egito, a nobreza levava o ouro e as posses até para o além-túmulo

 

Está na natureza humana querer se sobressair dos demais, especialmente com coisas belas e luxuosas, como jóias, ouro e produtos refinados”, afirma a jornalista e pesquisadora americana Dana Thomas.

 

De fato, nos séculos seguintes, o Antigo Egito demarcou sua rígida pirâmide social promovendo o acesso exclusivo a certos bens. Apenas quem estava no poder — a família do faraó e os sacerdotes — poderia ostentar peças de ouro, prata, lápis-lazúli (pedra preciosa preferida dos egípcios), inclusive após a morte.

 

A estratégia de reservar às elites políticas e religiosas os produtos de melhor acabamento e procedência perdurou por milhares de anos. Na Grécia Antiga, berço da cultura do prazer, tecidos e tinturas específicos vestiam os membros da nobreza, e eram negados ao resto da população. À mesma época, as dinastias que controlavam diferentes territórios na atual China não democratizavam os frutos de avanços científicos. Na Roma Antiga, somente senadores e aristocratas freqüentavam os balneários para discutir os rumos do império.

 

Durante a Idade Média, os servos deveriam se esforçar para produzir excedentes agrícolas e pecuários se quisessem comer, enquanto só nobres e superiores da Igreja usufruíam dos requintes elaborados por artesões de renome. Em meados do século 15, esses profissionais se agruparam em oficinas, onde mantinham aprendizes e ofereciam iguarias sob nomes que garantiam a excelência dos produtos, de maneira semelhante às grifes de hoje.

 

As oficinas deram origem a parte da burguesia que se consolidou na Idade Moderna, com o fim do feudalismo. As regras que impunham diferentes tipos de roupa para cada camada social continuavam, e, de modo geral, a vida luxuosa não era bem vista.

 

“Até o século 17, o luxo tinha um significado negativo de autoindulgência e privilegiação das satisfações carnais”, diz o professor Christopher Berry, da Universidade de Glasgow. “O luxo tornou certas sociedades militarmente fracas, levando-as a contratar exércitos mercenários enquanto se dedicavam a atividades econômicas de interesse restrito, em detrimento do bem público”.

 

“Impertinências monstruosas”

Após o século 17, eventos de magnitude global como a Independência dos Estados Unidos (1776) e a Revolução Francesa (1789-1799) mudaram substancialmente a visão geral sobre o luxo e, consequentemente, os hábitos de consumo a ele relacionados, segundo o professor Berry.

 

Carlota Joaquina, princesa do Brasil e rainha de Portugal: fuga mal planejada da família real não trouxe muitas mercadorias de luxo à colônia

 

“A partir desse momento, o luxo passou a ser julgado favoravelmente como um incentivo, o que aumentou o bem-estar material de todos”, afirma o acadêmico britânico. “Ele representava a visão realista de que os seres humanos são motivados por seus desejos, e que ter a liberdade de buscar esses desejos, dentro do Estado de Direito, era moralmente defensável”.

 

Em outras palavras, a possibilidade de a burguesia obter bens até então restritos às cortes — sobretudo às cortes absolutistas, superdispendiosas — transformou a produção de objetos e serviços de luxo em um modelo de negócio. Restrito aos burgueses, mas mais acessível e, principalmente, mais desejado por todos. Não era mais um estigma de quem detinha o poder apenas por laços hereditários.

 

Adam Smith (1723-1790), considerado pai da economia moderna e mais importante teórico do liberalismo econômico, chegou a chamar de “impertinências monstruosas” as leis suntuárias, que, havia séculos, ditavam as roupas a serem usadas por cada parcela da sociedade.

 

No Brasil, porém, o acesso a bens de luxo tardou a ser real. “A corte brasileira possuía hábitos simples e não tinha chances de consumir os produtos semi-artesanais e posteriormente industriais produzidos na Europa” diz o diretor do programa de MBA em gestão do luxo da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), Silvio Passarelli.

 

Autor de “O Universo do Luxo: Marketing e Estratégia para o Mercado de Bens e Serviços de Luxo”, Passarelli afirma que a vinda da Família Real, mal planejada e realizada às pressas diante da ameaça de invasão do exército napoleônico, em 1808, não trouxe grande variedade de produtos luxuosos. Por isso, tampouco contribuiu de maneira significativa para emancipar o consumo da colônia, elevada à condição de vice-reino em 1815.

 

Diz Passarelli: “O luxo no Brasil ficou restrito a pequenas ocorrências nas cortes do Rio de Janeiro. Só no fim do século 19, representantes das elites econômicas passaram a enviar seus filhos ao exterior (sobretudo à França e à Itália) para estudarem. Já formados, eles retornavam ao país habituados ao consumo de itens feitos com materiais de qualidade superior”.

 

Consumo global

Na maior parte do século 20, o Brasil ainda não era o país ideal para se comprar artigos de luxo. “Nos anos 1970, por exemplo, o mercado era pequeno e fundamentalmente uma fotografia do consumo das elites, com produtos importados que chegavam quase sempre de maneira ilegal”, afirma o professor Passarelli.

“Costureiras e artesãos que faziam roupas e calçados com matérias-primas importadas criaram os embriões para o mercado brasileiro de luxo atual. Apenas nos anos 1990 o país se abriu comercialmente às marcas internacionais, quando elas já estavam deixando de ser negócios caseiros”, diz o docente da FAAP.

Loja da Louis Vuitton na Avenida Champs-Elysées, em Paris: de negócio familiar a empresa de capital aberto, lucro saltou de US$ 12 milhões para US$ 3 bilhões em 30 anos

 

O projeto de expansão global das grifes europeias, que fez empresas familiares se transformarem em multinacionais, foi responsável por fortes alterações nos métodos de produção de itens de luxo — e por um crescimento inédito no lucro dessas marcas.

Esse fenômeno dos anos 1990 é um dos principais objetos de estudo de Dana Thomas, jornalista e pesquisadora americana radicada na França. Seu livro mais famoso é o polêmico “Como o Luxo Perdeu o Brilho” (Editora Campus), em que defende a revalorização dos designers e artesãos por trás dos produtos mais cobiçados.

Um dos casos mais expressivos de ampliação de oferta e demanda é o da Louis Vuitton. Em 1977, sob o modelo de negócio familiar, a grife francesa possuía apenas duas lojas, uma em Paris e outra em Nice. Faturava US$ 12 milhões por ano. 30 anos depois, após abrir seu capital, tinha cerca de 370 lojas espalhadas pelo mundo e faturava pelo menos US$ 3 bilhões anualmente.

Para Dana, o problema não está no lucro, mas no modo de se conduzir a expansão de uma empresa voltada para o mercado de luxo. “Existem artistas que criam objetos bonitos com amor e integridade, e as pessoas têm vontade de comprá-los. O objetivo desses profissionais não é ficarem ricos, mas criar, e seu lucro vem como uma conseqüência natural”, afirma Dana.

“Deve-se tomar cuidado para não confundir luxo com marketing, sobretudo com marketing desalmado”, diz a pesquisadora. “Quando se trata apenas de uma série de coisas supervalorizadas, não há integridade nem no produto nem na maneira como ele é vendido”.

O professor Christopher Berry, da Universidade de Glasgow, também vê com ressalvas o patamar alcançado pelos índices de consumo. “Há um desafio previsível para a legitimidade do desejo por bens de luxo”, afirma o pesquisador. “A ameaça de danos irreparáveis à natureza forçam a sociedade a uma prudente reavaliação das suas compras. Ainda assim, há poucos indícios de que essa mudança no estilo de vida esteja para acontecer”.

 

Futuro dourado

Não são apenas as mudanças climáticas que oferecem desafios ao mercado de luxo. Hoje, esse meio vive uma guerra declarada contra outro mercado: o paralelo. Para a pesquisadora Dana Thomas, a pirataria é o efeito colateral mais perigoso da expansão das grandes marcas. Ao menos 7% de tudo que consumimos é falsificado, segundo ela.

Dica da americana Dana Thomas: “Não se deve confundir luxo com marketing desalmado”

 

“Existem carros da Ferrari ‘piratas’. Existem alimentos para bebês ‘piratas’. Existem componentes de avião ‘piratas’. Tudo pode ser pirateado hoje”, diz Dana, referindo-se ao uso de peças ou ingredientes de origem duvidosa na fabricação dos produtos. “Mas um dos maiores segmentos da pirataria é o de moda, porque é fácil copiar roupas, calçados e acessórios. E é até mais fácil vendê-las, porque as empresas já fizeram toda a publicidade necessária”.

Ainda de acordo com a pesquisadora, as falsificações representam uma ameaça para a economia porque nenhum percentual do dinheiro que a pirataria movimenta retorna ao mercado legal. “É um negócio que emprega trabalhadores e crianças ilegalmente. Se essas pessoas recebessem educação de qualidade e acabassem legalmente empregadas, seriam profissionais registrados, pagariam os tributos do governo e contribuiriam para a economia formal, mas nada disso acontece. É uma grande perda”, afirma Dana.

No Brasil, o segmento de luxo nunca foi tão promissor. “O avanço desse mercado é irreversível”, afirma Silvio Passarelli, professor da FAAP. “As vendas de produtos e serviços de luxo no Brasil movimentam cerca de US$ 5 bilhões por ano. Ainda é pouco, podemos chegar a US$ 20 bilhões. Atualmente os brasileiros, inclusive os das classes mais altas e média, estão vivenciando a estabilidade econômica e se sentem mais à vontade para consumir”.

 

O professor Berry vai mais longe. Identifica no atual momento do mercado de luxo no Brasil uma espécie de “ritual de iniciação” no rol das nações desenvolvidas. “De certo modo, a expansão desse meio é um sintoma de transformação. A extensão do desejo por objetos e serviços luxuosos traria um retorno positivo. Positivo o bastante para encorajar mais o potencial econômico brasileiro”, diz Berry.

 

Fonte: epocanegocios